"acho que Emerson escreveu algures que uma biblioteca é uma espécie de caverna mágica cheia de mortos. e esses mortos podem renascer, podem voltar à vida quando abrimos as suas páginas."
[BORGES, Jorge Luis in Este ofício de poeta]
JOANA RÊGO
O LO QUE PUEDE SER PINTURA HOY
"The word and Image are one" - Hugo Ball (1915)
Em Joana Rêgo a pintura pretende ser, numa primeira e matricial instância, corpo de um alfabeto: uma espécie de abecedário que possa ser assumido como estruturador e pretexto de um projecto de pintura. Parece existir, portanto, uma estratégia de lógica lúdica que se constrói tendo a letra e ou a palavra como elemento iniciador e detonador. Em atitude que se pensa o fazer como exercício processual de seriação e de colecção de signos e de imagens, a presente exposição, intitulada de BIBLIOTECA prolonga anteriores projectos pictóricos realizados já em torno da relação e correspondência entre a palavra e a imagem, de que se destacará, nomeadamente, De A a Z.
Das pinturas-palavras iniciais de Joana Rêgo, que organizadas foram em torno das 23 letras de um alfabeto enquanto exercício de conotação icónica complementar, existem agora propostas mais precisas e que pretendem apenas determinar algumas das infinitas possibilidades de organização: em torno do lugar e ideia de biblioteca, temos nesta exposição pinturas como Books, Words & Images, J,Painting, Metamorfose, B de Brossa, e Asian Books. O que deseja, certamente, propor-se como enunciado próprio que não esteja refém de um alfabeto exclusivo e absoluto: é curioso verificar que o binómio palavra e imagem se plasma em pintura (e) metamorfose. Se anteriormente colocar-se-ia a
questão: 'que imagem (imagens) se aloja(m) numa palavra?'; com o evoluir deste processo de metamorfose uma mais radical correspondência se afigura, por isso, poder-se-ia colocar uma outra e nova questão: que palavra (palavras) se aloja(m) numa imagem? Desta maneira, e para além da circunstância extrema, esta eventual questão como que faz inverter a pergunta da pintura, ou seja, a pintura como um exercício de permanente citação, mas também como um exercício de permanente reformulação de sentidos e de significados. De certo modo seria como que uma espécie de texto de artista no interior da própria pintura. Com efeito, a pintura de Joana Rêgo, uma vez mais, repercute uma estratégia centrada no paradigma resultante da relação articulada entre a imagem e a palavra, isto é, na possibilidade de se pensar a pintura como originária de um pensamento onde o alfabeto consagra a iconicidade em imaginário de uma ficção semântica que em imagem se produz. 'Contentores por excelência de palavras e imagens', o que se exulta na pintura de Joana Rêgo é a ideia de que a pintura, enquanto reportório, retém e amplia o sentido e significado de uma letra, de uma palavra, de um significado. Entre o livro pintado, ou a pintura escrita, a diferença é insignificante, ou inexistente, porque justamente o significado está naquilo que a pintura deseja explicitar ou não explicitar.
BIBLIOTECA, palavra de dez letras. Ou, pintura de dez letras, que se despoletam em desdobradas impossibilidades de serem por si só acontecimento. Este é um começo, ou ponto de partida, ou mesmo pretexto na pintura que aqui, nesta Biblioteca a BIBLIOTECA se expõe. Pintura de lugar, mas também de tempo e de espaço, pintura que é, por isso, de desígnio de um pretexto que se foca e se desfoca, que se centraliza e se descentraliza. Por estas razões, esta pintura de Joana Rêgo desenvolve e sugere a revelação de uma Pintura que "avança pelo fenómeno desconhecido das imagens e das palavras, transpondo a distância entre o eu e o exterior", como nos diz Fátima Pombo.
A palavra pintada, ou a pintura escrita, surge em Joana Rêgo como enunciado moderno de questionar a função da pintura. Na função de estabelecer, em contexto mais amplo, uma ideia de pintura que possa decorrer de uma proposta de refundação dos paradigmas adoptados no século XX. Agora de um outro alfabeto se trata, certamente, contudo o estabelecimento de uma ponte entre a arte e a vida surge como estratégia implícita de se romper com os limites da convencional natureza pictural. [...]
Por António Quadros Ferreira
O título da exposição, Biblioteca, explica a pintora, "surgiu não só pelo espaço privilegiado em que o projeto é apresentado, mas também porque a exposição anda toda à volta dos livros, contentores por excelência de palavras e imagens, reais ou por nós imaginadas".
Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira até 4 de março.
segunda-feira a sábado, das 10h30 às 23h00 | domingo, das 20h00 às 23h00
in [http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/molduras/?Joana-Rego.rtp&post=37785]