Na arte e vida de Cristina Branco (Almeirim, 1972) pode dizer-se, como diz a letra de Amália, que traz o fado nos sentidos. O fado atravessou a vida de Cristina por um acaso feliz. De certa maneira, terá sido ela, pela sua ousadia estética e cunho interpretativo muito particular, a atravessar o Fado enquanto fenómeno musical de profundas raízes tradicionais. «Começou por uma brincadeira, um serão de cantigas entre amigos», segundo gosta de recordar. Nada até aqui, adolescente, a diria fadista. Antes de entoar menores, mourarias ou maiores (*), e logo como gente grande, Cristina não frequentara casas de fado ou escutara o vinil das vozes da tradição. Conhecia alguns fados de ouvido, trauteados pelo avô materno, letras e acordes que repetia de improviso sem ter consciência de como estes se entranhavam, como lhe decidiam o destino. Estava por essa altura mais próxima de Billie Holliday e Ella Fitzgerald, de Janis Joplin e Joni Mitchell do que Amália Rodrigues. Quando o mesmo avô lhe ofereceu pelos seus 18 anos o disco Rara e Inédita, obra maior e menos conhecida da grande diva do Fado, não sabia ainda como acabara de lhe mudar a vida para sempre. [ler mais]
Novo álbum de Cristina Branco chama atenção para "muita coisa errada"
A cantora Cristina Branco afirmou que o seu novo álbum, "Alegria", que é editado na próxima segunda-feira, é "um apontar o dedo" à situação atual "e dizer: desculpem, mas há aqui muita coisa errada!"
"É uma chamada de atenção para uma coisa muito importante: estamos a ser postos à prova da forma mais bárbara, e estamos e perder o sentido do coletivo", disse a cantora, que defendeu "uma união social, senão este país vai pelo cano".
Para a intérprete, este é "um disco com um determinado empenho social", que preparava desde o fim do anterior, "Não há só tangos em Paris", editado em 2011.
"Alice no País dos Matraquilhos", de Sérgio Godinho, "O lenço da Carolina", com música de João Paulo Esteves da Silva e letra de Miguel Farias, que assina outros temas, assim como "Branca Aurora", de Jorge Palma, são algumas das canções do álbum, editado pela Universal Music.
"O disco começou a ser organizado no final do 'Não há só tangos em Paris', mas as coisas aconteceram muito rapidamente, e eu sinto que há uma necessidade muito grande de falar de certas coisas; e se eu tenho uma voz, se posso ser o veículo de uma mensagem importante, se posso fazer com que as pessoas oiçam e se apercebam de determinadas coisas, porque é que não faço? É quase um dever cívico, enquanto cantora", disse, em entrevista à Lusa.
"Sou uma pessoa de causas, e à volta do disco há um conjunto de coisas que foram conjugadas por mim, por isso há um empenho meu muito grande, e isto é o que eu queria realmente dizer", sustentou a cantora.
O álbum, o 13.º da carreira de Cristina Branco, integra apenas dois fados -- o da "Defesa" e o "Bizarro" -- e, além das composições de Jorge Palma, Mário Laginha ou Ricardo Dias, inclui uma canção de Chico Buarque, "Construção", e outra da canadiana Joni Mitchell, "Chereokee Louise".
O "Fado Bizarro", referiu a cantora, reata a tradição do "fado operário", que ficou esquecida e até ofuscada durante o regime ditatorial, que vigorou antes do 25 de Abril de 1974.
Para a cantora, este é "um disco panfletário, no sentido de dar o alerta, e daí estas canções serem histórias com que nos confrontamos todos os dias, que falam de pessoas que nós conhecemos e com as quais nos cruzamos no dia-a-dia".
O título do álbum - "Alegria" - é "um paradoxo, uma ironia", em relação à temática que as diferentes canções abordam, incluindo o "Fado Bizarro", de Acácio Gomes dos Santos, "O cidadão de frente para a cidade", uma letra de Manuela de Freitas, e o poema de Gonçalo M. Tavares, "O desempregado com filhos", que é declamado, fechando o alinhamento, antes da faixa bónus, o "Fado da Defesa", de José António Sabrosa, com letra de António Calem, do repertório de Maria Teresa de Noronha.
A escolha do "Fado da Defesa" é uma homenagem ao avô da cantora que gostava deste tema, e um pedido dos músicos que a ouvem "cantarolá-lo nos ensaios".
Voltando ao título do álbum, Cristina Branco acrescentou que "funciona aqui de várias maneiras".
"Há uma ironia, porque os nossos governantes nos dizem que devemos ter imaginação, sorrir perante a adversidade... 'Porque não dormir nas ruas, se os outros conseguem tu também consegues? 'Bora lá'!".
Ao mesmo tempo, é também um paradoxo, "sentir que a cultura está a minguar de uma forma dramática, no nosso país", que "estamos a viver [uma época] em que [a cultura] é completamente desvalorizada, e em que as pessoas estão a ser educadas e induzidas a aligeirar cada vez mais o pensamento".
E esta - rematou Cristina Branco - "é uma forma muito subtil, mas quase ditatorial de impor princípios às pessoas". [dn.pt]