Deixa uma obra marcada pelo amor, a dor e a morte. Lutou contra a ditadura militar responsável pelo assassinato do seu filho e foi forçado ao exílio em 1976. Nunca deixou de se bater pelos direitos humanos, contra qualquer forma de poder absoluto.
Disse numa entrevista ao diário El País no ano passado, quando já estava muito doente, que não desprezava a vida, mas que também não temia a morte. Depois de décadas de poesia e de resistência, marcadas pela morte do filho às mãos da ditadura, o argentino Juan Gelman morreu esta terça-feira, na Cidade do México, onde vivia. Tinha 83 anos.
“Não creio que chegue aos 100 anos”, disse ao jornal espanhol. “E ainda que queira ver casar os meus netos e ter algum bisneto, acredito que Deus, se existe, deve estar entediadíssimo com a sua eternidade.”
Gelman, que segundo a imprensa espanhola morreu tranquilamente, rodeado de familiares, sofria de uma disfunção ligada à medula óssea. “Cada día/ me acerco más a mi esqueleto”, escreve num poema em que fala da morte que se aproxima, disponível no site do El País. “Esqueleto saqueado, pronto/ no estorbará tu vista ninguna veleidade./ Aguantarás el universo desnudo.”
Autor de uma vasta obra em que a crítica social e política assume papel de destaque, foi por amor que começou a escrever, dedicando os seus primeiros poemas às paixões de juventude em Buenos Aires, onde nasceu. Esqueceu-se desses primeiros versos, mas não se esqueceu do nome de uma delas – Ana –, conta o El País.
Apesar de ter também assinado textos de prosa e até traduções, foi com a poesia, que a mãe sempre duvidou que viesse a servir para o sustentar, que Gelman se afirmou: Violín y otras cuestiones (1956), El Juego en que andamos I (1959), Velorio del solo (1961), Cólera Buey (1965), Fábulas (1971) e Hacia el Sur (1982) estão entre os seus títulos mais populares, num percurso que lhe valeu vários prémios, como o Cervantes (2007), o mais importante das letras espanholas, o Neruda (2005) ou o Rainha Sofia de Poesia Latino-americana (2005).
Nas actas em que justificavam a escolha de Gelman, os júris dos vários prémios salientaram com frequência a sua lírica centrada nas coisas simples do dia-a-dia, nas pessoas e na natureza, atenta à injustiça e sensível à dor dos outros.
Filho de emigrantes ucranianos, deve ao irmão mais velho, Boris, que lhe dava a conhecer os grandes autores russos no original, língua que o então ainda muito jovem Juan Gelman desconhecia, boa parte do seu fascínio pela poesia e pela obra de Dostoievski, que começou a ler aos oito anos. Seguiram-se, segundo o diário francês Libération, Aleksandre Puchkine e os grandes clássicos espanhóis, como Luis de Góngora, Lope de Vega e Francisco de Quevedo.
Um reencontro
O combate contra a ditadura na Argentina viria a marcar a sua vida e a sua obra. Um ano antes do golpe de Estado de 1976 que levou ao poder a junta militar de Emilio Eduardo Massera, na sequência do qual se veria obrigado a deixar o país, Juan Gelman entrou para os Montoneros, guerrilheiros ligados à oposição de esquerda, de que mais tarde se distanciaria. Esta associação, assim como a que mantinha com vários grupos de escritores que se opunham frontalmente ao regime, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, valeram-lhe uma ordem de captura que só seria levantada em 1988, ano em que trocou o seu exílio Europeu pelos Estados Unidos e, pouco depois, pelo México. [...][publico.pt]