Caranguejola
Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
Mário de Sá-Carneiro
in “Últimos Poemas”, Paris, Novembro 1915
Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é familia,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem familia).
O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traíu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projecto.
Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo
A sua bôca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)
E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
E tenho pêna de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
Desceu-me nalma o crepusculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Alcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Mário de Sá-Carneiro
in 'Dispersão'
Deixa uma obra marcada pelo amor, a dor e a morte. Lutou contra a ditadura militar responsável pelo assassinato do seu filho e foi forçado ao exílio em 1976. Nunca deixou de se bater pelos direitos humanos, contra qualquer forma de poder absoluto.
Disse numa entrevista ao diário El País no ano passado, quando já estava muito doente, que não desprezava a vida, mas que também não temia a morte. Depois de décadas de poesia e de resistência, marcadas pela morte do filho às mãos da ditadura, o argentino Juan Gelman morreu esta terça-feira, na Cidade do México, onde vivia. Tinha 83 anos.
“Não creio que chegue aos 100 anos”, disse ao jornal espanhol. “E ainda que queira ver casar os meus netos e ter algum bisneto, acredito que Deus, se existe, deve estar entediadíssimo com a sua eternidade.”
Gelman, que segundo a imprensa espanhola morreu tranquilamente, rodeado de familiares, sofria de uma disfunção ligada à medula óssea. “Cada día/ me acerco más a mi esqueleto”, escreve num poema em que fala da morte que se aproxima, disponível no site do El País. “Esqueleto saqueado, pronto/ no estorbará tu vista ninguna veleidade./ Aguantarás el universo desnudo.”
Autor de uma vasta obra em que a crítica social e política assume papel de destaque, foi por amor que começou a escrever, dedicando os seus primeiros poemas às paixões de juventude em Buenos Aires, onde nasceu. Esqueceu-se desses primeiros versos, mas não se esqueceu do nome de uma delas – Ana –, conta o El País.
Apesar de ter também assinado textos de prosa e até traduções, foi com a poesia, que a mãe sempre duvidou que viesse a servir para o sustentar, que Gelman se afirmou: Violín y otras cuestiones (1956), El Juego en que andamos I (1959), Velorio del solo (1961), Cólera Buey (1965), Fábulas (1971) e Hacia el Sur (1982) estão entre os seus títulos mais populares, num percurso que lhe valeu vários prémios, como o Cervantes (2007), o mais importante das letras espanholas, o Neruda (2005) ou o Rainha Sofia de Poesia Latino-americana (2005).
Nas actas em que justificavam a escolha de Gelman, os júris dos vários prémios salientaram com frequência a sua lírica centrada nas coisas simples do dia-a-dia, nas pessoas e na natureza, atenta à injustiça e sensível à dor dos outros.
Filho de emigrantes ucranianos, deve ao irmão mais velho, Boris, que lhe dava a conhecer os grandes autores russos no original, língua que o então ainda muito jovem Juan Gelman desconhecia, boa parte do seu fascínio pela poesia e pela obra de Dostoievski, que começou a ler aos oito anos. Seguiram-se, segundo o diário francês Libération, Aleksandre Puchkine e os grandes clássicos espanhóis, como Luis de Góngora, Lope de Vega e Francisco de Quevedo.
Um reencontro
O combate contra a ditadura na Argentina viria a marcar a sua vida e a sua obra. Um ano antes do golpe de Estado de 1976 que levou ao poder a junta militar de Emilio Eduardo Massera, na sequência do qual se veria obrigado a deixar o país, Juan Gelman entrou para os Montoneros, guerrilheiros ligados à oposição de esquerda, de que mais tarde se distanciaria. Esta associação, assim como a que mantinha com vários grupos de escritores que se opunham frontalmente ao regime, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, valeram-lhe uma ordem de captura que só seria levantada em 1988, ano em que trocou o seu exílio Europeu pelos Estados Unidos e, pouco depois, pelo México. [...][publico.pt]
Mário de Sá Carneiro
Lisboa, 19 de maio de 1890 — Paris, 26 de abril de 1916
poeta contista e ficcionista português é um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu
Quási
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador d´espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor ! - quasi vivido ...
Quasi o amor, quase o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão ...
Mas na minh´alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d' heroi, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d´asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro
in 'Dispersão'
Títulos, deste autor, na biblioteca municipal.
José Bento de Almeida e Silva Nascimento (Pardilhó, Estarreja, 17 de novembro de 1932) é um poeta e tradutor português, e importante divulgador da cultura hispânica em Portugal, tendo começado a fazer traduções do espanhol para o português há mais de meio século
Fez os seus primeiros estudos em Pardilhó, continuando-os no Porto e em Lisboa, onde concluiu, em 1955, o curso do extinto Instituto Comercial de Lisboa e ingressou no ensino secundário, que abandonou para trabalhar em diversas empresas. Ainda estudante colaborou no jornal "O Concelho de Estarreja" e em algumas revistas de poesia como Árvore, Sísifo, Eros e Cadernos do Meio-Dia. Foi um dos fundadores, nos anos 50, da revista de poesia Cassiopeia. De 1963 a 1969, fez parte da redacção da revista O Tempo e o Modo. Publicou crítica literária em jornais e revistas, designadamente na Colóquio-Letras e na Brotéria.
Só nos finais dos anos setenta é que José Bento deu a público dois livros, Sequência de Bilbau e In Memoriam, onde continua o verso livre dos seus primeiros textos mais representativos, o qual se aproxima, pela amplidão e pela disciplina a que se sujeita, do versículo bíblico. Cruza-se, assim, a sua poesia, cujo carácter meditativo ou religioso num sentido amplo está em perfeita consonância com o verso escolhido, por via do discursivismo em que inequivocamente aposta, com a que, na década de setenta, procura alternativas válidas para a tendência antidiscursivista dominante nos anos sessenta. A sua atividade de tradutor de poesia em língua castelhana toca a sua própria produção poética, pelo trato íntimo que essa atividade proporciona: por vezes a intertextualidade com os poetas que traduz é visível na sua poesia.[ler mais]
José Bento distinguido com Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2013
O tradutor português José Bento foi distinguido com o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2013 pelo livro "Sítios", editado pela editora Assírio & Alvim, revelou a Fundação Luís Miguel Nava.
O prémio, de cinco mil euros, é atribuído com periodicidade bienal e José Bento sucede a Hélder Moura Pereira, vencedor em 2011, com a obra "Se as coisas não fossem o que são".
Instituído pela Fundação Luís Miguel Nava desde 1997, por vontade expressa em testamento do poeta e ensaísta português, falecido em 1995, o galardão teve periodicidade anual até 2009, tendo sido Sofia de Mello Breyner Andresen a primeira vencedora com a obra “O búzio de cós”.
Fernando Echevarría, António Franco Alexandre, Armando Silva Carvalho, Manuel Gusmão, Fernando Guimarães, Manuel António Pina, Luís Quintais, António Ramos Rosa, Pedro Tamen e A. M. Pires Cabral e Helder Moura Pereira foram os outros contemplados com o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava.
O júri deste ano foi constituído, como habitualmente, por quatro membros da direção da Fundação Luís Miguel Nava - Carlos Mendes de Sousa, Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz e Luís Quintais - e por um elemento convidado, o poeta e ensaísta Fernando J. B. Martinho. [ionline.pt]
Títulos, deste autor, disponíveis na biblioteca municipal.
António Tomás Botto
(Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959)
Poeta português cuja obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia Canções que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época. Homossexual assumido (apesar de ser casado com uma Bejense, Carminda Alves Silva), a sua obra reflete muito da sua orientação sexual e no seu conjunto será, provavelmente, o mais distinto conjunto de poesia homoerótica de língua portuguesa. Morreu atropelado em 1959 no Brasil, para onde se tinha exilado para fugir às perseguições homófobas de que foi vítima, na mais dolorosa miséria.
Anda, Vem
Anda, vem... por que te négas,
Carne morêna, toda perfume?
Por que te cálas,
Por que esmoreces
Boca vermêlha, - rosa de lume!
Se a luz do dia
Te cóbre de pêjo,
Esperemos a noite presos n'um beijo.
Dá-me o infinito goso
De contigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O arôma e o calôr
Da tua carne, - meu amôr!
E ouve, mancebo aládo,
Não entristeças, não penses,
- Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem peccado...
Anda, vem... dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos;
Tenho Saudades da vida!
Tenho sêde dos teus beijos!
António Botto
In “Canções”
Linda Inês
Choram ainda a tua morte escura
Aquelas que chorando a memoraram;
As lágrimas choradas não secaram
Nos saudosos campos da ternura.
Santa entre as santas pela má ventura,
Rainha, mais que todas que reinaram;
Amada, os teus amores não passaram
E és sempre bela e viva e loira e pura.
O Linda, sonha aí, posta em sossêgo
No teu muymento de alva pedra fina,
Como outrora na Fonte do Mondego.
Dorme, sombra de graça e de saudade,
Colo de Garça, amor, moça menina,
Bem-amada por toda a eternidade
Afonso Lopes Vieira
In“Cancioneiro de Coimbra”
Afonso Lopes Vieira
(Leiria, 26 de janeiro de 1878 — Lisboa, 25 de janeiro de 1946)
Poeta português cuja poesia, próxima do saudosismo se inscreve num filão tradicional, fazendo de certa forma a transição entre a poesia neorromântica de fim-de-século e as correntes nacionalistas e sebastianistas do início do século XX, recuperando métricas, formas e temas tanto inspirados na literatura clássica como nos romanceiros ou na literatura popular.
Saudades de Portugal
1
Nunca como em Veneza
adoro a nossa pobreza
portuguesa;
as nossas casas caiadas,
as nossas praias salgadas,
os burricos berberes,
e na Batalha de pedras douradas
a saia pela cabeça das mulheres.
Ó Veneza oriental,
marítimo tesouro
de púrpura, de mármores e de ouro:
- em Portugal
rico só é o ceu que nos lá cobre.
Portugal teve o mundo - e ficou pobre.
2
Aquele romantismo de Veneza
ah! não, não acabou
enquanto um ruivo sol de dogareza
o Canal Grande todo iluminou.
Sirenetta d´Annunzio cobiçava
certa gôndola em flor;
e a sombra de Musset, no Danieli, lembrava
as cruezas de George, o amor e a dor.
Mas à varanda deste albergo Real
(diz lá, Poesia: onde é que moras tu?)
um hóspede contempla a luz ideal
sentado em almofada de cautchú.
3
Este lugar Anfitrite,
com seu capitão de Ílhavo,
que leva gasolina
a portos da Moirama
e às correntes mais vivas se abandona,
quanto mais me diverte
que o Roma e o Cap Arona!
Vamos na intimidade
do mar, com quem podemos conversar...
- Ó palaces horríveis p´ra viajar!
Coqueteiles de horror! Cadáveres pintados!
Banqueiros! Espiões de todos os Estados! -
Aqui vivo na tolda e ando salgado,
livre do mau-olhado,
e durmo sono fundo
sob as estrelas, té que rompa o dia.
Neste nosso veleiro
poderíamos dar a volta ao mundo
porque ia connosco a Ria
de Aveiro!...
4
Lavrador do Chão,
se semeio trigo
choro-me comigo
e não colho pão.
E se planto vinha
e trato o que planto,
que miséria a minha,
o meu vinho é pranto.
Lavrador do mar,
se semeio espuma
colho e ceifo bruma,
ponho-me a cantar!
Ó seara de vagas
em que os olhos ponho,
que bem que me pagas
em moeda de sonho!...
Afonso Lopes Vieira
In “Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa”
Ser Poeta
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
Florbela Espanca
in "Charneca em Flor"
Florbela Espanca
(Vila Viçosa, 8 de dezembro de 1894 — Matosinhos, 8 de Dezembro de 1930)
batizada como Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, foi uma poeta portuguesa. A sua vida, de apenas trinta e seis anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos que a autora soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotismo, feminilidade e panteísmo.
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca
in "Charneca em Flor"
Teixeira de Pascoaes
pseudónimo literário de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, (Amarante, 8 de novembro de 1877 — Gatão, 14 de dezembro de 1952 foi um poeta e escritor português principal representante do Saudosismo.
De Noite
Quando me deito ao pé da minha dôr,
Minha Noiva-phantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos intimos, acêsos,
Extaticos, surprêsos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o habito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dôr... o amôr antigo.
A minha dôr está comtigo ali,
Como, outrora, eu estava ao pé de ti...
Se fôsse a minha dôr, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!
Mas eu não sou a dôr, a dôr etérea...
Sou a Carne que soffre; esta miseria
Que no silencio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama…
Teixeira de Pascoaes
in “Elegias”
A minha mãe
As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Ma entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há-de ficar.
Das minha ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
- O teu amor santíssimo de mãe.
Augusto Gil
in “Musa Cérula”
Balada da neve
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.
Augusto Gil
in “Luar de Janeiro”
Títulos, deste autor, disponíveis na biblioteca municipal.
Augusto Gil
Augusto César Ferreira Gil
(Lordelo do Ouro, 31 de julho de 1873 - Guarda, 26 de fevereiro de 1929)
advogado e poeta português, viveu praticamente toda a sua vida na Cidade da Guarda onde colaborou e dirigiu alguns jornais locais.
Na sua poesia notam-se influências do Parnasianismo e do Simbolismo. Influenciado por Guerra Junqueiro, João de Deus e pelo lirismo de António Nobre, a sua poesia insere-se numa perspetiva neo-romântica nacionalista.
Passeio de Santo António
Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.
Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…
E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.
Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo…
O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.
Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia… o coração no peito.
Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Ó Frei António, o que foi aquilo?…
O Santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei o que fosse. Eu cá não ouvi nada…
Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho.
- Tu não estás com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!…
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,
Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
… Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!
Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus,
São horas…
........................E abalaram pró convento.
Augusto Gil
in “Luar de Janeiro”
Títulos, deste autor, disponíveis na biblioteca municipal.
Paisagens de Inverno
I
Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! o sol! Volvei, noites de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos.
Extintas primaveras evocai-as:
_ Já vai florir o pomar das maceiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias._
Sossegai, esfriai, olhos febris.
_ E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas...Doces vozes senis..._
II
Passou o outono já, já torna o frio...
_ Outono de seu riso magoado.
llgido inverno! Oblíquo o sol, gelado...
_ O sol, e as águas límpidas do rio.
Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
_ E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...
Camilo Pessanha
in 'Clepsidra'
Camilo de Almeida Pessanha
(Coimbra, 7 de Setembro de 1867 — Macau, 1 de Março de 1926)
foi um poeta português considerado o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, além de antecipar o princípio modernista da fragmentação
Caminho
I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d_harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
d Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar d encher a alma.
Camilo Pessanha
in 'Clepsidra'
Eugénio de Castro
Eugénio de Castro e Almeida (Coimbra, 4 de março de 1869 — 17 de agosto de 1944) foi um escritor português cuja obra pode ser dividida em duas fases: na primeira, a fase simbolista, apresenta algumas características da Escola Simbolista, como o uso de rimas novas e raras, novas métricas, sinestesias, aliterações e vocabulário mais rico e musical e ue corresponde a sua produção poética até o fim do século XIX.
A segunda fase ou neoclássica, corresponde aos poemas escritos no século XX, nos quais vemos um poeta voltado à Antiguidade Clássica e ao passado português, revelando um certo saudosismo, característico das primeiras décadas do século XX em Portugal.
Soneto sem título
TUA frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.
Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.
Sei que jamais hei-de possuir-te, sei
Que outro, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.
Meu coração no entanto não se cansa,
Amam metade os que amam com esp'rança,
Amar sem esp'rança é o verdadeiro amor.
Paris, 29 de Setembro de 1889
Eugénio de Castro
in «Poeta do Amor e da Beleza», Oaristos
Os Sinos
1
Os sinos tocam a noivado,
No Ar lavado!
Os sinos tocam, no Ar lavado,
A noivado!
Que linda criança que assoma na rua!
Que linda, a andar!
Em extasi, o povo commenta que é a Lua,
Que vem a andar...
Tambem, algum dia, o povo na rua,
Quando eu cazar,
Ao ver minha noiva, dirá que é a Lua
Que vae cazar...
2
E o sino toca a baptizado
Que lindo fado?
E o sino toca um lindo fado,
A baptizado!
E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o lavar,
E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o sujar.
Ó boa madrinha, que o enxugas de leve,
Tem dó d'esses gritos! Comprehende esses ais:
Antes o enxugue a Velha! antes Deus t'o leve!
Não soffre mais...
3
Os sinos dobram por anjinho,
Coitadinho!
Os sinos dobram, coitadinho...
Pelo anjinho!
Que aceiada que vae p'ra cova!
Olhae! olhae!
Sapatinhos de sola nova,
Olhae! olhae!
Ó lindos sapatos de solinha nova,
Bailae! bailae!
Nas eiras que rodam debaixo da cova...
Bailae! bailae!
4
O sino toca p'ra novena,
Gratiae plena,
E o sino toca, gratiae plena,
P'ra novena.
Ide, meninas, á ladainha,
Ide rezar!
Pensae nas almas como a minha...
Ide rezar!
Se, um dia, me deres alguma filhinha,
Ó Mãe dos Afflictos! ella ha-de ir, tambem:
Ha-de ir ás novenas, assim, á tardinha,
Com sua mãe...
5
E o sino chama ao Senhor-fóra,
A esta hora!
Os sinos clamam, a esta hora,
Ao Senhor-fóra!
Accendei, vizinhos, as velas,
Allumiae!
Velas de cera nas janellas!
Allumiae!
E luas e estrellas tambem poem velas,
A allumiar!
E a alminha, a esta hora, já está entre ellas,
A allumiar...
6
E os sinos dobram a defuntos,
Todos juntos!
E os sinos dobram, todos juntos,
A defuntos!
Que triste ver amortalhados!
Senhor! Senhor!
Que triste ver olhos fechados!
Senhor! Senhor!
Que pena me fazem os amortalhados,
Vestidos de preto, deitados de costas...
E de olhos fechados! e de olhos fechados!
E de mãos postas!
E os sinos dobram a defuntos,
Dlin! dlang! dling! dlong!
E os sinos dobram, todos juntos,
Dlong! dlin! dling! dlong
António Nobre
in 'Só'
António Pereira Nobre (Porto, 16 de Agosto de 1867 — Foz do Douro, 18 de Março de 1900) foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português. A sua principal obra, Só (Paris, 1892), é marcada pela lamentação e nostalgia, imbuída de subjectivismo, mas simultaneamente suavizada pela presença de um fio de auto-ironia e com a rotura com a estrutura formal do género poético em que se insere, traduzida na utilização do discurso coloquial e na diversificação estrófica e rítmica dos poemas. Apesar da sua produção poética mostrar uma clara influência de Almeida Garrett e de Júlio Dinis, ela insere-se decididamente nos cânones do simbolismo francês. A sua principal contribuição para o simbolismo lusófono foi a introdução da alternância entre o vocabulário refinado dos simbolistas e um outro mais coloquial, reflexo da sua infância junto do povo nortenho. Faleceu com apenas 32 anos de idade, após uma prolongada luta contra a tuberculose pulmonar.
O Somno de João
O João dorme... (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...)
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!
O João dorme... Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...
O João dorme... Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...
Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vae sem se sentir.»
Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!
E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!
Mas para isso, ó Maria!
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...
E os annos irão passando.
Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha tambem)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas:
Morrerá sem o sentir,
Isto é deixa de dormir...
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde elle veio...
Mas para isso, ó Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais davagar:
Não vá o João, acordar...
António Nobre
in 'Só'´
A moça e a velha
«– Você, oh tia Maria,
Está velha como um caco,
nem pode sair de dia
Mais feia do que um macaco!
Já não faz meia, nem fia!
Toda vestida de trapos,
Quase cega, manca e surda,
Ninguém lhe inveja a existência,
Causa nojo aos próprios sapos,
E já não vive, chafurda
Nas vasas da decadência,
Como diz o nosso abade.»
Disse-lhe a velha, serena:
«– Já fui isso que tu és,
E na minha mocidade
Dançava, e até com graça;
Chamou-me um vate açucena,
E vi muitos a meus pés
Cá na aldeia, e na cidade,
Mas na vida tudo passa.»
«Sim, pareço-te uma bruxa,
E não sei que mais, um grou;
A minha perna estrebucha,
E provoco a hilaridade,
Mas, ouve isto que te digo:
Talvez, para teu castigo,
Não chegues à minha idade,
Nem a ser isto que sou!»
João Penha
in “Últimas Rimas”, Renascença Portuguesa, 1919
João Penha
João Penha de Oliveira Fortuna (1838-1919) nasceu e faleceu na cidade de Braga. Matriculou-se na Universidade de Coimbra em Teologia, passando depois para o curso de Direito onde se formou em 1873. Juntou-se desde logo ao grupo dos estudantes boémios, tornando-se amigo de Gonçalves Crespo, Cândido de Figueiredo, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, entre outros.
A sua poesia comunga das concepções parnasianas, tendo contribuído grandemente para o rejuvenescimento do soneto em Portugal.
Consolação
Eu fiz da vida um plácido remanso:
Vivo cantando, como o ancião de Cós.
A acção do tempo não me afrouxa a voz,
E para o ignoto alegremente avanço.
Compara as nossas vidas: eu, descanso;
É triste o teu viver, sem paz, atroz!
Parece a morte, ao longe, um leão feroz;
Ao perto é outra; um cordeirinho manso.
Para que a receias, pois, e te lastimas?
O varão forte vence a dor, não chora;
Volta ao violão jucundo, às tuas rimas.
Volta ao viver antigo, sem demora;
Que quanto mais da noite te aproximas,
Mais te aproximas do esplendor da aurora!
João Penha
in “Ecos do Passado”, 1914
Hino à Solidão
Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma nunca
Se encontra só; a Alma é um mundo, um mundo
[aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.
Mundo vasto que mil existências povoam:
Imagens, concepções, formas do sentimento,
— Sonhos puros que nele em beleza revoam
E ficam a brilhar, sóis do seu firmamento.
Dia a dia, hora a hora, o Pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vai germinar na Palavra,
Cantar no Som, flores na Cor, sorrir na Pedra!
Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.
Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso criador,
Da Glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um deus no seu mundo interior.
E que mundo sublime, esse em que ele se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo criou,
E em cuja criação o seu sangue palpita,
Que não há deus estranho aos orbes que formou.
Nem lutas, nem paixões: ideais serenidades
Em que o Tempo se esvai sob o encanto da Hora...
O passado e o porvir são ânsias e saudades:
Só no instante que passa a plenitude mora.
Sombra crepuscular, que a Noite não atinge,
Nem a Aurora desfaz: rosicler e luar,
Meia tinta em que a Alma abre os lábios de Esfinge,
E o seu mistério ensina a quem sabe escutar.
Mas então, inundando essa penumbra doce,
De não sei que sublime esplendor sideral,
Como se a emanação dum ser divino fosse,
Deixa no nosso olhar um reflexo imortal.
Na vertigem que a vida exalta e desvaria,
Pára alguém para ouvir um coração que bate
No seio mais formoso, o olhar que se extasia
Vê o mundo que nele em ânsias se debate?
É só na solidão que a alma se revela,
Como uma flor nocturna as pétalas abrindo,
A uma luz, que é talvez o clarão duma estrela,
Talvez o olhar de Deus, de astro em astro caindo...
E dessa luz, a flor sem forma, há pouco obscura,
Recebe o seu quinhão de graça e de pureza,
Como das mãos do artista, animando a escultura,
O mármore recebe a sua alma — a Beleza.
Se sofrer é pensar, na paz do isolamento,
Como dum cálix cheio o líquido extravasa,
A Dor, que a Alma empolgou, transborda em
[pensamento,
E a pouco e pouco extingue o fogo em que se
[abrasa.
Como a montanha de oiro, a Alma, em seu
[mistério,
À superfície nunca o seu teor revela;
Só depois de sondado e fundido o minério
Se conhece a riqueza acumulada nela.
Corações que a Existência em tumulto arrebata!
Esse oiro só se extrai do minério candente,
No silêncio, na paz, na quietação abstracta,
Das estrelas do céu sob o olhar indulgente...
António Feijó
in 'Sol de Inverno', 1922
António Feijó
António de Castro Feijó (Ponte de Lima, 1 de Junho de 1859 - Estocolmo, 20 de Junho de 1917) foi um poeta e diplomata português que deixou uma obra reveladora de tendências diversas situadas entre o Parnasianismo, o Romantismo, o Decadentismo e o Simbolismo
O Livro da Vida
Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia...
— Lia o «Livro da Vida» — herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarão da primeira alvorada.
Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.
Passa o Estio, a cantar; acumulam-se Invernos;
E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça,—
A ler e a meditar postulados eternos,
Sem um fanal que o seu espírito esclareça!
Cada página abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Ele tenta arrancar da folha percorrida,
Como de mina obscura a pedra refulgente.
Mas o tempo caminha; os anos vão correndo;
Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão...
E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo!
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.
Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,
Nem o humano sofrer, que outras almas enluta,
Nem a neve do Inverno a pratear-lhe os cabelos!
Só depois de voltada a folha derradeira,
Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado,
É que o Sábio entreviu, como numa clareira,
A luz que iluminou todo o caminho andado..
Juventude, manhãs de Abril, bocas floridas,
Amor, vozes do Lar, estos do Sentimento,
— Tudo viu num relance em imagens perdidas,
Muito longe, e a carpir, como em nocturno vento.
Mas então, lamentando o seu estéril zelo,
Quando viu, a essa luz que um instante brilhou,
Como o Livro era bom, como era bom relê-lo,
Sobre ele, para sempre, os seus olhos cerrou...
António Feijó
in 'Sol de Inverno”, 1922
O Rosário
Quando à noite contemplo taciturno
estas contas antigas, o rosário
das minhas orações,
vejo em minh'alma o poema legendário dos velhos tempos das longínquas eras
de santas devoções.
A cruz ebúrnea, onde agoniza o Cristo,
é de um lavor subtil que nos revela
um génio magistral,
obra de monge em merencória cela,
piedoso artista há muito adormecido
em velha catedral.
Tem séculos; talvez que nestes contas
passasse outrora suas mãos esguias
a castelã senil,
pensando triste nos saudosos dias
em que a seus pés um menestrel vibrava
o mimoso arrabil.
Talvez que este rosário minorasse
as saudades da noiva lacrimante
que debalde esperou
em cada nau, que vinha do Levante,
o seu donzel amado que partira
e nunca mais voltou.
Sobre a cota de um jovem cavaleiro,
que o beijava por noite estreladas
pensando em sua mãe,
ele assistiu às guerras das cruzadas,
atravessou talvez a Terra Santa
e viu Jerusalém.
Talvez alguma freira, em triste claustro,
de seus anos na doce primavera
só dele confiou
seus loucos sonhos de falaz quimera,
e, apertando o rosário ao peito ansioso,
consolada expirou.
Isto o que leio no rosário antigo;
e, quando melancólico lhe beijo
as contas de marfim,
no ar escuto indefinido arpejo,
e então a crença, a mística toada,
murmura dentro em mim.
Gonçalves Crespo
in Miniaturas
Gonçalves Crespo
António Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro, 11 de Março de 1846 — Lisboa, 11 de Junho de 1883) foi um poeta de influência parnasiana, sendo membro das tertúlias intelectuais portuguesas do último quartel do século XIX onde convive com João Penha, o poeta que introduziu o parnasianismo em Portugal.
Nascido nos arredores da cidade do Rio de Janeiro, filho de mãe escrava, fixou-se em Lisboa aos 10 anos de idade e estudou Direito na Universidade de Coimbra.
Dedicou-se essencialmente à poesia e ao jornalismo. Faleceu em Lisboa com apenas 37 anos de idade.
A sua afirmação como poeta foi reforçada postumamente em 1887, quando foram publicadas as suas Obras Completas, com prefácio de Teixeira de Queirós e da escritora e poeta Maria Amália Vaz de Carvalho, sua mulher.
Alguém
Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais de Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
E, se na Terra existe, é porque existo.
Esse alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!
Quando, alta noite, me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.
Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! esse alguém
É de meus olhos a esplendente aurora;
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!
in Miniaturas
Gonçalves Crespo
Num Bairro Moderno
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." È muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, ao bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!..."
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário - que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
In O Livro de Cesário Verde, Lisboa, 1887
Cesário Verde
Vaidosa
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.
Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.
E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes,
E possuis muito amor... muito amor próprio
Cesário Verde
In O Livro de Cesário Verde, Lisboa, 1887
Cesário Verde
José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, 25 de Fevereiro de 1855 - 19 de Julho de 1886) é unanimemente considerado um dos precursores da poesia Portuguesa do século XX.
Embora não pudesse ser enquadrado em nenhuma das escolas poéticas dos países de língua portuguesa da sua época pode dizer-se que Cesário Verde estaria de alguma forma relacionado com as correntes estéticas do seu tempo. No interesse pela captação do real, nos seus quadros e figuras citadinos, concretos, plásticos e coloridos, é fácil detectar a afinidade ao Realismo. A ligação aos ideais do Naturalismo verifica-se na medida em que o meio surge determinante dos comportamentos. Se considerarmos o fato do poeta figurar plasticamente numa cena, poderia aproximá-lo, inclusive, do Parnasianismo e mesmo do Romantismo.
No seu estilo delicado, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema sensibilidade ao retratar a cidade e o campo, que são os seus cenários predilectos. Evitou o lirismo tradicional, expressando-se de uma forma mais natural. Os ecos da sua obra são notórios nos poemas de Fernando Pessoa, parecendo o predecessor do heterónimo Álvaro de Campos de Opiário e sendo citado várias vezes por Alberto Caeiro.
De Tarde
Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde
In O Livro de Cesário Verde, Lisboa, 1887
Este poema cantado por Pedro Barroso:
O hóspede
Choro por ver que os dias passam breves
E te esqueces de mim quando tu fores;
Como as brisas que passam doudas leves,
E não tornam atrás a ver as flores.
Teófilo Braga
"Onde vais, estrangeiro! Por que deixas
O solitário albergue do deserto?
O que buscas além dos horizontes?
Por que transpor o píncaro dos montes,
Quando podes achar amor tão perto?...
"Pálido moço! Um dia tu chegaste
De outros climas, de terras bem distantes...
Era noite!... A tormenta além rugia...
Nos abetos da serra a ventania
Tinha gemidos longos, delirantes.
"Uma buzina restrugiu no vale
Junto aos barrancos onde geme o rio...
De teu cavalo a galopar soava,
E teu cão ululando replicava
Aos surdos roncos do trovão bravio.
"Entraste! A loura chama do brasido
Lambia um velho cedro crepitante,
Eras tão triste ao lume da fogueira...
Que eu derramei a lágrima primeira
Quando enxuguei teu manto gotejante!
"Onde vais, estrangeiro? Por que deixas
Esta infeliz, misérrima cabana?
Inda as aves te afagam do arvoredo...
Se quiseres... as flores do silvedo
Verás inda nas tranças da serrana.
"Queres voltar a este país maldito
Onde a alegria e o riso te deixaram?
Eu não sei tua história... mas que importa?...
... Bóia em teus olhos a esperança morta
Que as mulheres de lá te apunhalaram.
"Não partas, não! Aqui todos te querem!
Minhas aves amigas te conhecem.
Quando à tardinha volves da colina
Sem receio da longa carabina
De lajedo em lajedo as corças descem!
"Teu cavalo nitrindo na savana
Lambe as úmidas gramas em meus dedos,
Quando a fanfarra tocas na montanha,
A matilha dos ecos te acompanha
Ladrando pela ponta dos penedos.
"Onde vais, belo moço? Se partires
Quem será teu amigo, irmão e pajem?
E quando a negra insônia te devora,
Que, na gritaria que suspira e chora,
Há de cantar-te seu amor selvagem?
"A choça do desterro é nua e fria!
O caminho do exílio é só de abrolhos!
Que família melhor que meus desvelos?...
Que tenda mais sutil que meus cabelos
Estrelados no pranto de teus olhos?...
"Estranho moço! Eu vejo em tua fronte
Esta amargura atroz que não tem cura.
Acaso fulge ao sol de outros países,
Por entre as balças de cheirosos lises
A esposa que tua alma assim procura?
"Talvez tenhas além servos e amantes,
Um palácio em lugar de uma choupana,
E aqui só tens uma guitarra e um beijo,
E o fogo ardente de ideal desejo
Nos seios virgens da infeliz serrana!..."
No entanto Ele partiu!... Seu vulto ao longe
Escondeu-se onde a vista não alcança...
... Mas não penseis que o triste forasteiro
Foi procurar nos lares do estrangeiro
O fantasma sequer de uma esperança!...
Curralinho, 29 de abril de 1870.
Teófilo Braga in Antologia
Teófilo Braga
(Ponta Delgada, 24 de Fevereiro de 1843 - 28 de Janeiro de 1924). Cedo revela queda para a literatura e publica em 1859 na própria tipografia onde trabalhava o seu livro de estreia, Folhas Verdes. Em 1861 vai para Coimbra, onde frequenta o curso de Direito. Por essa altura, colaboraem O Institutoe na Revista de Coimbra, entre outras, opondo-se frontalmente ao Ultra-romantismo e participando na Questão Coimbrã.
Acalentar meninos
Embala, preta, embala Menino do teu senhor; Canta-lhe bem amoroso,
Anima-lo com amor.
Embala, preta, embala,
Como o fez San José,
Que os anjos cantarão:
Pater nostre domine.
San José, a trabalhar,
Embalava com seu pé:
“Calai-vos, Jesus Menino,
Nascido em Nazaré,”
Meu San José, acudi
Dai-me da vossa graça,
Com que enxugue ao meu menino
Suas lágrimas de prata.
Embala, preta, embala,
Como a Virgem faria,
Que os anjos cantarão:
“Gratia Plena Ave-Maria”.
Cantigas embalou Jesus:
-Calai-vos, meu bento filho,
Que haveis de morrer na cruz.
Nossa Senhora, acudi,
Dai-me o vosso tesouro,
Com que cale o meu menino
Que chora lágrimas de ouro.”
Teófilo Braga in Cem Poemas Portugueses sobre a Infância